Dei uma desaparecida por aqui, sim. Me remendei nessas últimas semanas, como uma boa virose/bactéria costuma fazer com nosso corpo. Uma vez, minha mãe foi ao médico para tratar uma gripe e ele disse "nada como ficar doente para nos fazer descansar, né?", e é. Muita gente já comentou sobre como o "descanso" é um problema em um mundo dominado pela obsessão pela produtividade, mas hoje não é sobre isso que quero falar. Quero conversar com você sobre Lego. Isso aí, aquele brinquedinho de montar que só os mais afortunados tinham (e ainda têm) acesso, pois no Brasil ele é muito caro.
Vivi uma infância de poucas condições financeiras e muitas doações: roupas, brinquedos, até um computador velho, minha família já ganhou. Dentre os brinquedos, um dos mais incríveis que recebi foi um saco enorme de pecinhas de Lego. Eu achei aquilo simplesmente maravilhoso, pois não sabia sequer que tal diversão existia. Com minha mente cheia de fantasias, me pus a brincar com as múltiplas possibilidades de encaixes. Acabei descobrindo que eu adorava montar naves espaciais malucas e casinhas - talvez aí uma alma de arquiteta tenha se revelado. Com o tempo aprendi a construir histórias com os bonequinhos, assim como fazia com minhas Barbies. Porém, gradativamente, me senti limitada pela falta de opções, e o Lego foi perdendo a graça. Eu queria mais graminhas para fazer um jardim na minha casa, ou pecinhas de luz para simular criações nas minhas máquinas... Fui me acostumando com as mesmas peças de sempre, e a diversidade que antes me encantava se tornou repetitiva, tornando meu entretenimento cansativo. Queria novidades, mas a falta de recursos para trazê-las à brincadeira me fez deixar o Lego cada vez mais de lado até o saco ser enfurnado nas portas de cima do guarda-roupa dos meus pais e nunca mais fazer parte do meu dia-a-dia.
No entanto a experiência não se silenciou na minha memória, o Lego me deixou marcas que vão além do tangível; ele se tornou um símbolo. Depois fui brincar com quebra-cabeças e vi que o raciocínio era o mesmo, pecinhas encaixadas que formavam alguma coisa. É uma analogia que pode ser aplicada em quase tudo na vida. Seja uma tarefa simples, como organizar uma agenda, ou algo mais complexo, como lidar com emoções. Recentemente, aprendi que os encaixes não precisam fazer sentido, e essa descoberta foi revolucionária para mim.
Nem sempre encontramos a peça perfeita para preencher a lacuna de um quebra-cabeça e, na maioria das vezes, precisamos lidar com o que temos nas mãos e seguir em frente. O resultado pode não ser bonito ou bem encaixado. Minha criança interior detestaria essa experiência - gargalhadas altas aqui. Podemos planejar a vida e desejar dela a possibilidade de construir aquela máquina espacial do jeito que foi imaginada, com as luzes piscantes, a frente planejada, um bonequinho bacana dirigindo, mas isso não é real. Para quem vive na fantasia, a realidade pode ser desoladora. Aprender a viver com as peças que possuo e a construir o que dá com elas tem sido meu grande desafio neste ano, e, vou ser honesta, tem sido muito difícil!
Além disso, às vezes, algo vem e derruba aquilo que levamos tanto tempo para dar forma. É o que costumo comentar muito com a minha terapeuta em tom daquele tipo de brincadeira meio sem graça - do só rindo para não chorar - "a vida não espera a gente se resolver nela para nos mandar novos perrengues". A vida não é uma entidade que opera por si só, mas eu realmente acredito no acaso e nas direções que escolhemos seguir. É uma sensação desconcertante: você está em uma jornada que levou tempo para se estabelecer, tudo funcionando, e, de repente, não está mais. As peças foram derrubadas. Em momentos assim, onde encontrar apoio? Às vezes, somos nós mesmos que derrubamos nossas construções, seja por autoboicote, seja porque sentimos que um ciclo se encerrou e é hora de novos caminhos. Com isso, aprendi: não se apegue demais à vida que você construiu, se apegue a quem você é, pois, em meio à confusão das peças no chão, é a única coisa que você irá reconhecer. Não deixe de se divertir também. Na vida adulta, precisamos reaprender a brincar, já que somente assim nos autorizaremos experimentar sem aquela régua pesada do "dever", do "ter", que nos estrangula tanto.
Nesta arte, produzida em bronze, a artista brasileira traz à tona a temática do brincar, remetendo à vida infantil. Eu não sei você, mas me gerou uma sensação muito agradável de nostalgia. É uma escultura que olho sorrindo por dentro. As crianças estão em movimento, ao mesmo tempo que a circularidade da ciranda, em termos analíticos, remete a uma integralidade da psique, como se o bem estar gerado pela diversão e risadas (que podem ser escutadas ao fundo, se você prestar bastante atenção) faz a nossa mente rever uma cisão que acontece na passagem da infância para a vida adulta. É necessário mesmo que para ser adulta eu precise deixar de ser criança? Como recobrar essa experiência na vida adulta? Como transcender a brutalidade do cotidiano de modo que as responsabilidades não necessitem, sempre, serem atividades chatas e coisas de gente grande?
Eu estou redescobrindo o que é o brincar. Está sendo um processo de encontro comigo mesma. Cresci em uma família que, segundo os moldes tradicionais, considerava o brincar como uma coisa de criança ou de quem não tinha responsabilidade na vida. Mas o que é um hobby senão um brincar? Meu pai, por vezes, se dedica a ouvir as músicas de que gosta — isso é brincar. Minha mãe se volta ao que chama de "desestressar", quando vai à cozinha experimentar uma nova receita. Isso é pura brincadeira. Nós, humanos, brincamos o tempo todo, o problema é que parece que falar que “estamos brincando” remove a relevância do que estamos fazendo, sendo que deveria ser o contrário, deveria ser uma afirmação de nossa própria identidade, de quem acreditamos ser. Estamos explorando nossa própria interioridade, isso é brincar. Por isso, o ato deveria estar presente quando tentamos encontrar encaixes para nossas questões de vida e tomadas de decisão. Saber quem somos já é meia caminhada para uma decisão mais alinhada com o que queremos para a nossa vida. Na analogia do encaixe, implica acertar a peça em um buraco um pouco mais apropriado.
Mais uma analogia sobre os encaixes das peças de Lego que ilustra bem essa questão: sobre quando nos forçam a entrar em espaços que não nos cabem, e nos esforçamos a estar nesses lugares. Como mulher, essa experiência é bastante intensa. O que desejam de mim em termos de gênero? É muito, depilação em dia, unhas pintadas, roupas que valorizam minhas curvas, ser a louca da correria do dia-a-dia mesmo quando estiver menstruada - dá-lhe os comerciais sem noção de absorventes -, ser uma boa mãe, ser uma boa companheira, ser cuidadora e sensível - mas sem surtar por estar reprimindo minha raiva e indignação - gostar de coisas femininas e, ao mesmo tempo, não tão femininas, aprender a dominar e a satisfazer o parceiro na cama, cuidar do cabelo com cremes diversos que o deixam cheiroso, macio e brilhante - assim como nos comerciais de cosméticos capilares também sem noção -, trabalhar bem, se eu for chefe de equipe, estar provando constantemente a minha eficiência e o motivo de estar naquela posição... Isso tudo para não dizer o mínimo e olha que sequer entrei no campo das responsabilidades domésticas e continuo tratando de um quadro de uma experiência de mulher branca. Já refleti bastante sobre esse tema e recentemente descobri que não quero me encaixar, se isso me leva para um aprisionamento de ser. Isso é sim uma escolha individual.
Entendo que a decisão de não corresponder a uma série de critérios é lenta, não é uma desconstrução que se faz rapidamente, e vale também para todo tipo de desencaixes que queremos fazer na vida, não apenas de gênero. Isso implica assumir faltas, de pertencimento, de agradar, de se envolver... É quando esperaremos menos do mundo e saberemos lidar com o que é possível ser feito naquele instante, naquele contexto, naquele local. À medida que a gente descobre que conseguimos manejar essas ausências internas, compreendendo que elas não precisam ser preenchidas ou, pelo menos, completadas o tempo inteiro, e que não teremos sempre aquela peça-chave que preencherá determinada lacuna do quebra-cabeça, percebo que é aí que estaremos prontos para alçar voos mais corajosos na vida.